sexta-feira, 27 de outubro de 2017



O Teu Riso


Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas
não me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a flor de espiga que desfias,
a água que de súbito
jorra na tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
por vezes com os olhos
cansados de terem visto
a terra que não muda,
mas quando o teu riso entra,
sobe ao céu à minha procura
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, na hora
mais obscura desfia
o teu riso. E,se de súbito,
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

Perto do mar no outono,
o teu riso deve ergue
a sua cascata de espuma.
E na primavera, amor,
quero o teu riso como
a flor que eu esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
curvas da ilha,
ri-te deste rapaz
desajeitado que te ama,
mas, quando abro
os olhos e os fecho,
quando os meus passos se forem,
quando os meus passos voltarem,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas o teu riso nunca,
porque sem ele morreria.



Pablo Neruda 

domingo, 22 de outubro de 2017




Para quê?!


Florbela Espanca (poetisa portuguesa)


Tudo é vaidade neste mundo vão…
Tudo é tristeza, tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!

Até o amor nos mente, esta canção
Que o nosso peito ri à gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão!…

Beijos de amor! Pra quê?! … Tristes vaidades!
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!

Só neles acredita quem é louca!
Beijos de amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta!…

segunda-feira, 16 de outubro de 2017



SIC TRANSIT GLORIA MUNDI

Abandonaste-me por eu ser pobre,
Vendendo tua alma por dinheiro.
Onde ficou aquele porte nobre
Que ostentavas de modo altaneiro?

Éramos jovens - isto é verdade.
Mas, eu tinha o meu sonho bem guardado
De ir em busca da felicidade
E lutar com denodo ao teu lado.

Agora estou idoso neste mundo
E vivo com decência a minha vida.
E tu também estás envelhecida,

Mas vives só, naquele asilo imundo.
Onde estão teu orgulho e teu conforto?
Contigo tudo está sepulto e morto!


Geraldo de Castro Pereira

quinta-feira, 12 de outubro de 2017




A criança que fui chora na estrada...




A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.


Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.


Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,


Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.


FERNANDO PESSOA.


domingo, 8 de outubro de 2017




Nel mezzo del Camin…

Olavo Bilac

       Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
      E triste, e triste e fatigado eu vinha.
     Tinhas a alma de sonhos povoada,
          E alma de sonhos povoada eu tinha…

E paramos de súbito na estrada
       Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
   Tive da luz que teu olhar continha.

   Hoje segues de novo… Na partida
         Nem o pranto os teus olhos umedece,
      Nem te comove a dor da despedida.

     E eu, solitário, volto a face, e tremo,
  Vendo o teu vulto que desaparece
         Na
extrema curva do caminho extremo.


domingo, 1 de outubro de 2017




Trovinhas

No deserto escaldante
Da minha vida vazia
Não tenho sequer a sombra
Desta tua companhia



Meus cabelos eram  pretos.
Agora fiquei  grisalho.
Na verdade, foram beijos
Enviados pelo orvalho.


“Quem canta espanta seus males”,
Assim que diz o ditado.
Espanto também os outros,

Se eu canto desafinado.


Homem, ao passar dos anos,
Sofre tantos desatinos:
Costuma não ver de perto,
Mas vê de longe os cretinos


Contigo vivo sonhando,
Aos poucos me consumindo...
Contigo sonho acordado,
Contigo sonho dormindo.






GERALDO DE CASTRO PEREIRA